Irmão de Zico fala sobre sua trajetória no futebol e o que enfrentou na ditadura
por Gabriel Cortez
Nascido em Quintino Bocaiuva
(RJ), Fernando Antunes
Coimbra teve cinco irmãos,
dos quais três, assim como ele, escolheram
ganhar a vida com o futebol.
Zeca, o mais velho, se destacou
jogando no Fluminense; Edu, o do
meio, no América-RJ e Zico, o caçula,
no Flamengo. Nando trilhava o
mesmo caminho, mas seu posicionamento
político mudou um pouco
os rumos dessa história.
Além de jogador, o irmão de Zico
foi integrante do Plano Nacional de
Alfabetização (PNA), do pedagogo
Paulo Freire, sendo, por isso, considerado
subversivo pelo regime militar.
A cada clube que chegava, Nando
recebia uma desculpa diferente
para não ser escalado. Ao todo, foram
nove anos de carreira, passando
por clubes como Madureira, Ceará,
Belenenses e Gil Vicente – estes dois
últimos em Portugal, onde chegou,
inclusive, a receber ameaças da polí-
cia política do ditador Salazar.
No dia 30 de Agosto de 1970,
Nando foi preso e passou quatro
dias no DOI-CODI, onde foi interrogado
e torturado. Quase quarenta
anos depois, em Julho de 2011, veio
a sua reabilitação pública: Fernando
Antunes Coimbra se tornou o primeiro
ex-jogador de futebol anistiado
pela Comissão de Anistia do Ministério
da Justiça. Em entrevista ao
Jornal aGente, Nando conta o que
sentiu na pele:
|
Nando (à direita) ao receber o pedido oficial de desculpas do
governo brasileiro dos conselheiros da Comissão Nacional de Anistia,
Sueli Belatto e Mário Albuquerque (foto: Arquivo pessoal) |
Comissão de Anistia Nacional
“Na verdade, essa comissão é
o reconhecimento de uma perseguição
que minha família sofreu na
qual o principal visado era eu. Tudo
começou quando nós passamos no
concurso do Plano Nacional de Alfabetização,
criado pelo grande Paulo
Freire. Logo em seguida estourou a
Ditadura e eles consideraram o PNA
subversivo. A partir dali, nós passamos
a ser considerados subversivos.
Mas eu já estava começando no
futebol e fui obrigado a esquecer o
PNA”.
Interferência da ditadura
“No início de 1966 eu me profissionalizei,
jogando pelo Santos de
Vitória (ES). Foi ali que começou a
perseguição. Mas eu não quis acreditar
que aquilo era verdade. Eu
bem no campeonato, fomos vice-
-campeões do torneio da capital. O
treinador caiu, inexplicavelmente.
Assumiu um capitão ou major do
exército, não me lembro. Eles começaram
a entrar no futebol e, em
uma semana, eu fui afastado. Voltei
para o Rio e assinei contrato com o
América, onde já jogavam o Edu e o
Antunes. O treinador, que era o Evaristo
de Macedo, falou que estava
com medo de colocar no ataque três
irmãos porque podia gerar uma ciumeira.
Tudo bem, respeitamos. Dali
eu fui emprestado ao Madureira, no
campeonato de 1967. Me destaquei,
mas fui, novamente, convidado a me
retirar, por outro diretor. O presidente
era meu amigo e falou que não
podia fazer nada, como o presidente
do Santos de Vitória. Aí fiquei parado,
até começar o campeonato do
ano seguinte. Em 1968 eu fui para
o Ceará Sport. Lá não houve nada.
Sempre fui tratado maravilhosamente,
inclusive o livro da minha história
é feito pelo Centro Cultural do Ceará.
Mas a proposta do Belenenses
era muito boa e fui para Portugal.
Cheguei lá, a PID foi atrás de mim, a
Polícia Política. Consegui voltar fugido
para o Brasil. Mas eu fiquei sem
campo de atuação, tanto lá, quanto
aqui. Até que, em 1971, meu pai falou
com o presidente do CND, que
era o general Sizeno Sarmento, e
disse que não aguentava mais a perseguição
que eu estava sofrendo. O
Edu já tinha deixado de ser convocado
para a Seleção de 70. Esse general
prometeu ao meu pai que iria
estudar o caso. Um mês depois eu
mesmo atendi o telefone, era ele, dizendo
que estava “tudo ok” comigo.
Eu estava com uma proposta do Gil
Vicente de Portugal e fui para lá, em
1971. No aeroporto eu passei normalmente,
porque não passava, né.
Cheguei lá em um inverno rigoroso
e comecei a ter uma distenção atrás
da outra, até que tive uma muito sé-
ria na virilha e o jeito foi retornar para
o Brasil. Aí eu desisti mesmo, porque
o Zico já estava despontando e a
gente em casa tinha certeza de que
ele ia ser um dos melhores do mundo.
Então, a minha preocupação a
partir daí foi preservar meus irmãos,
que já estavam sendo prejudicados
pela interferência da ditadura. E não
adiantou, porque nesse mesmo ano,
o Zico foi inexplicavelmente cortado
da Seleção Olímpica. Há pouco tempo,
tivemos a confirmação do treinador
de que recebeu ordens para
isso. Por isso ele não participou da
Olimpíada de 72, em Munique. Foi
a maior frustração da vida dele. Ele
quis parar de jogar. Meus irmãos não
deixaram, convenceram ele. Mas,
realmente, é uma mágoa grande,
porque se cortou o talento de um
garoto de 18 anos que não cometeu
crime nenhum”.
Retaliação sofrida
“Muita! Quando eu estava no
Belenenses fui procurado no hotel
por dois agentes da PID. Eles
disseram que sabiam muita coisa
da minha vida no Brasil e que queriam
meus documentos. Eu disse
que estavam na embaixada. Foi a
minha sorte. Eles falaram que iam
voltar, porque estavam me acompanhando.
Eu fiquei apavorado.
Eu estava demorando para assinar
o contrato por uma questão de
cifras. No dia seguinte, um diretor
comentou a visita que eu recebi
no hotel e disse que como eu era
filho de português eu poderia até
ir para a Guerra na África. Pô, eu
tomei um susto. Eu sozinho, com
22 anos, em outro país, em uma
época em que a comunicação era
praticamente zero. Me apavorei e
voltei para o Brasil”.
Família e perseguição
"Quando eu fui preso, em 1970, eu
fui para o DOI-CODI, na rua Barão
de Mesquita. Meus irmãos, o Edu e
o Antunes, foram para a porta do
quartel. O Antunes gritava que queria
ficar preso comigo. Minha mãe
foi para o portão também. Mas por
sorte a imprensa respeitou e não divulgou
nada. Era proibido mas eles
davam um jeito de publicar. Não publicaram.
Então, a coisa ficava assim,
muito nebulosa. Agora, claro, eles
foram prejudicados. O Edu não era
mais convocado para a Seleção Brasileira.
O Zico, a partir de 1974, depois
que meu nome limpou, a carreira
dele deslanchou no Flamengo
e como não havia mais nada contra
mim, acabou a perseguição. Parecia
uma coisa sádica, era um prazer sá-
dico de prejudicar”.
Mordaça estratégica
“Era uma retaliação silenciosa.
Você não tinha como reagir, você tinha
que enfrentar aquilo. Eu tenho
amigos na imprensa que nunca souberam
de nada. Isso foi um segredo
guardado quase quarenta anos, que
pegou de surpresa a opinião pública.
Em compensação, veio o reconhecimento,
o reconhecimento de quem
não tem culpa no cartório, que apenas
foi prejudicado. Um reconhecimento
que demora mas chega, e
chegou em vida, graças a Deus”.
Tortura premeditada
“A tortura existiu. Por exemplo,
nós chegamos em uma quinta-feira,
à noite, no DOI-CODI e ficamos dois
dias em pé, com as mãos na cabeça,
num corredor que parecia mais um
curral do que outra coisa. Quando
o braço começava a cansar e descia,
eles vinham com a espingarda
e cutucavam as costas da gente. Era
uma dor intensa. Toda hora eles enterravam
um capuz para interrogatório.
Era só humilhação, uma coisa
terrível".
Alerta à juventude
“Não esqueçam de amar profundamente
a democracia. A democracia
e a liberdade de expressão.
O que é mais importante, é
valorizar essa democracia que a
nossa geração deixou para eles,
para que nunca mais volte o sofrimento
que nós passamos. Viver
numa democracia é a melhor coisa
do mundo. E hoje, uma das melhores
que existe é a do Brasil. Viva
essa democracia!”