terça-feira, 3 de março de 2015

Irmão de Zico fala sobre sua trajetória no futebol e o que enfrentou na ditadura

por Gabriel Cortez

Nascido em Quintino Bocaiuva (RJ), Fernando Antunes Coimbra teve cinco irmãos, dos quais três, assim como ele, escolheram ganhar a vida com o futebol. Zeca, o mais velho, se destacou jogando no Fluminense; Edu, o do meio, no América-RJ e Zico, o caçula, no Flamengo. Nando trilhava o mesmo caminho, mas seu posicionamento político mudou um pouco os rumos dessa história.

Além de jogador, o irmão de Zico foi integrante do Plano Nacional de Alfabetização (PNA), do pedagogo Paulo Freire, sendo, por isso, considerado subversivo pelo regime militar. A cada clube que chegava, Nando recebia uma desculpa diferente para não ser escalado. Ao todo, foram nove anos de carreira, passando por clubes como Madureira, Ceará, Belenenses e Gil Vicente – estes dois últimos em Portugal, onde chegou, inclusive, a receber ameaças da polí- cia política do ditador Salazar.

No dia 30 de Agosto de 1970, Nando foi preso e passou quatro dias no DOI-CODI, onde foi interrogado e torturado. Quase quarenta anos depois, em Julho de 2011, veio a sua reabilitação pública: Fernando Antunes Coimbra se tornou o primeiro ex-jogador de futebol anistiado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Em entrevista ao Jornal aGente, Nando conta o que sentiu na pele:

Nando (à direita) ao receber o pedido oficial de desculpas do governo brasileiro dos conselheiros da Comissão Nacional de Anistia, Sueli Belatto e Mário Albuquerque (foto: Arquivo pessoal)

Comissão de Anistia Nacional

“Na verdade, essa comissão é o reconhecimento de uma perseguição que minha família sofreu na qual o principal visado era eu. Tudo começou quando nós passamos no concurso do Plano Nacional de Alfabetização, criado pelo grande Paulo Freire. Logo em seguida estourou a Ditadura e eles consideraram o PNA subversivo. A partir dali, nós passamos a ser considerados subversivos. Mas eu já estava começando no futebol e fui obrigado a esquecer o PNA”.

Interferência da ditadura

“No início de 1966 eu me profissionalizei, jogando pelo Santos de Vitória (ES). Foi ali que começou a perseguição. Mas eu não quis acreditar que aquilo era verdade. Eu bem no campeonato, fomos vice- -campeões do torneio da capital. O treinador caiu, inexplicavelmente. Assumiu um capitão ou major do exército, não me lembro. Eles começaram a entrar no futebol e, em uma semana, eu fui afastado. Voltei para o Rio e assinei contrato com o América, onde já jogavam o Edu e o Antunes. O treinador, que era o Evaristo de Macedo, falou que estava com medo de colocar no ataque três irmãos porque podia gerar uma ciumeira. Tudo bem, respeitamos. Dali eu fui emprestado ao Madureira, no campeonato de 1967. Me destaquei, mas fui, novamente, convidado a me retirar, por outro diretor. O presidente era meu amigo e falou que não podia fazer nada, como o presidente do Santos de Vitória. Aí fiquei parado, até começar o campeonato do ano seguinte. Em 1968 eu fui para o Ceará Sport. Lá não houve nada. Sempre fui tratado maravilhosamente, inclusive o livro da minha história é feito pelo Centro Cultural do Ceará. Mas a proposta do Belenenses era muito boa e fui para Portugal. Cheguei lá, a PID foi atrás de mim, a Polícia Política. Consegui voltar fugido para o Brasil. Mas eu fiquei sem campo de atuação, tanto lá, quanto aqui. Até que, em 1971, meu pai falou com o presidente do CND, que era o general Sizeno Sarmento, e disse que não aguentava mais a perseguição que eu estava sofrendo. O Edu já tinha deixado de ser convocado para a Seleção de 70. Esse general prometeu ao meu pai que iria estudar o caso. Um mês depois eu mesmo atendi o telefone, era ele, dizendo que estava “tudo ok” comigo. Eu estava com uma proposta do Gil Vicente de Portugal e fui para lá, em 1971. No aeroporto eu passei normalmente, porque não passava, né. Cheguei lá em um inverno rigoroso e comecei a ter uma distenção atrás da outra, até que tive uma muito sé- ria na virilha e o jeito foi retornar para o Brasil. Aí eu desisti mesmo, porque o Zico já estava despontando e a gente em casa tinha certeza de que ele ia ser um dos melhores do mundo. Então, a minha preocupação a partir daí foi preservar meus irmãos, que já estavam sendo prejudicados pela interferência da ditadura. E não adiantou, porque nesse mesmo ano, o Zico foi inexplicavelmente cortado da Seleção Olímpica. Há pouco tempo, tivemos a confirmação do treinador de que recebeu ordens para isso. Por isso ele não participou da Olimpíada de 72, em Munique. Foi a maior frustração da vida dele. Ele quis parar de jogar. Meus irmãos não deixaram, convenceram ele. Mas, realmente, é uma mágoa grande, porque se cortou o talento de um garoto de 18 anos que não cometeu crime nenhum”. 

Retaliação sofrida

“Muita! Quando eu estava no Belenenses fui procurado no hotel por dois agentes da PID. Eles disseram que sabiam muita coisa da minha vida no Brasil e que queriam meus documentos. Eu disse que estavam na embaixada. Foi a minha sorte. Eles falaram que iam voltar, porque estavam me acompanhando. Eu fiquei apavorado. Eu estava demorando para assinar o contrato por uma questão de cifras. No dia seguinte, um diretor comentou a visita que eu recebi no hotel e disse que como eu era filho de português eu poderia até ir para a Guerra na África. Pô, eu tomei um susto. Eu sozinho, com 22 anos, em outro país, em uma época em que a comunicação era praticamente zero. Me apavorei e voltei para o Brasil”.

Família e perseguição

"Quando eu fui preso, em 1970, eu fui para o DOI-CODI, na rua Barão de Mesquita. Meus irmãos, o Edu e o Antunes, foram para a porta do quartel. O Antunes gritava que queria ficar preso comigo. Minha mãe foi para o portão também. Mas por sorte a imprensa respeitou e não divulgou nada. Era proibido mas eles davam um jeito de publicar. Não publicaram. Então, a coisa ficava assim, muito nebulosa. Agora, claro, eles foram prejudicados. O Edu não era mais convocado para a Seleção Brasileira. O Zico, a partir de 1974, depois que meu nome limpou, a carreira dele deslanchou no Flamengo e como não havia mais nada contra mim, acabou a perseguição. Parecia uma coisa sádica, era um prazer sá- dico de prejudicar”.

Mordaça estratégica

“Era uma retaliação silenciosa. Você não tinha como reagir, você tinha que enfrentar aquilo. Eu tenho amigos na imprensa que nunca souberam de nada. Isso foi um segredo guardado quase quarenta anos, que pegou de surpresa a opinião pública. Em compensação, veio o reconhecimento, o reconhecimento de quem não tem culpa no cartório, que apenas foi prejudicado. Um reconhecimento que demora mas chega, e chegou em vida, graças a Deus”.

Tortura premeditada

“A tortura existiu. Por exemplo, nós chegamos em uma quinta-feira, à noite, no DOI-CODI e ficamos dois dias em pé, com as mãos na cabeça, num corredor que parecia mais um curral do que outra coisa. Quando o braço começava a cansar e descia, eles vinham com a espingarda e cutucavam as costas da gente. Era uma dor intensa. Toda hora eles enterravam um capuz para interrogatório. Era só humilhação, uma coisa terrível".

Alerta à juventude

“Não esqueçam de amar profundamente a democracia. A democracia e a liberdade de expressão. O que é mais importante, é valorizar essa democracia que a nossa geração deixou para eles, para que nunca mais volte o sofrimento que nós passamos. Viver numa democracia é a melhor coisa do mundo. E hoje, uma das melhores que existe é a do Brasil. Viva essa democracia!”

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